sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Flogose XCIII

Pelas tantas da noite o cérebro começa a afundar-se em pensamentos e mais pensamentos, muitos deles vagos demais para se prender a eles, muitos outros sem o mínimo de comprometimento com o que se deve pensar, todavia são todos eles vagos todos os que vem à noites, já que a maioria se acompanha de sentimentos inutilizáveis. Não há muito que se possa fazer numa situação dessas. O melhor seria beber, mas como o álcool não apetece-me a mente, como faz o cigarro, melhor foi procurar dentre minha pequena biblioteca algo para se ler. Foi então que encontrei: A Verdade, que agora transcrevo.
“A verdade Luís Fernando Veríssimo. Uma donzela estava um dia sentada à beira de um riacho, deixando a água do riacho passar por entre os seus dedos muito brancos, quando sentiu o seu anel de diamantes ser levado pelas águas. Temendo o castigo do pai, a donzela contou em sua casa que fora assaltada por um homem no bosque e que ele arrancara o anel de diamante do seu dedo e a deixara desfalecida sobre um canteiro de margaridas. Os pais e os irmãos da donzela foram atrás do assaltante e encontraram um homem dormindo no bosque, e o mataram, mas não encontraram o anel de diamante. E a donzela disse: Agora me lembro, não era um homem, eram dois. E o pai e os irmãos da donzela saíram atrás do segundo homem, e o encontraram, e o mataram, mas ele também não tinha o anel. E a donzela disse: – Então está com o terceiro! Pois se lembrava que havia um terceiro assaltante. E o pai e os irmãos da donzela saíram no encalço do terceiro assaltante, e o encontraram no bosque. Mas não o mataram, pois estavam fartos de sangue. E trouxeram o homem para a aldeia, e o revistaram e encontraram no seu bolso o anel de diamante da donzela, para o espanto dela. – Foi ele que assaltou a donzela, e arrancou o anel de seu dedo, e a deixou desfalecida – gritaram os aldeões – Matem-no! – Espere! – gritou o homem, no momento em que passavam a corda da forca em seu pescoço – Eu não roubei o anel. Foi ela que me deu! E apontou a donzela, diante do escândalo de todos. O homem contou que estava sentado à beira do riacho, pescando, quando a donzela se aproximou dele e pediu um beijo. Ele deu o beijo. Depois a donzela tirara a roupa e pedira que ele a possuísse, pois queria saber o que era o amor. Mas como era um homem honrado, ele resistira, e dissera que a donzela devia ter paciência, pois conheceria o amor do marido no seu leito de núpcias. Então a donzela lhe oferecera o anel dizendo: “Já que meus encantos não o seduzem, este anel comprará o seu amor.” E ele sucumbira , pois era pobre, e a necessidade é o algoz da honra. Todos se viraram contra a donzela e gritaram: “Rameira! Impura! Diaba!” e exigiram o seu sacrifício. E o próprio pai da donzela passou a forca para o seu pescoço. Antes de morrer, a donzela disse para o pescador: – A sua mentira era maior que a minha. Eles mataram pela minha mentira e vão matar pela sua. Onde está, afinal, a verdade? E o pescador deu de ombros e disse: - A verdade é que eu achei o anel na barriga de um peixe. Mas quem acreditaria nisso? O pessoal quer violência e sexo, não histórias de pescador.”
O interessante na estória é que ela própria é a mais pura verdade, pois normalmente omitimos ou mascaramos a verdade sob o subterfugio de que ninguém acreditará nela. As razões pela qual a omissão da verdade é mais valiosa que a verdade talvez se deva ao fato de que a verdade é muito mais simples do que deveria ser. Contemos a verdade e vejamos quem realmente acredita. Somos ensinados, quando crianças, que não devemos mentir, mas ninguém quer realmente saber a verdade. O que fazemos então?

Nenhum comentário:

Postar um comentário