quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Distopia

Casará ainda muito nova, aos vinte e um anos. A vida era frugal, mas ela gostava dos sabores pitorescos. Não acompanhava a vizinhança, e fazia gosto da distância. Por educação cumprimentava, mas mal sabia o nome do padeiro da esquina. O marido, ao contrário, era um homem simpático, educado e, principalmente, apaixonadíssimo pela esposa. E dizia: "Por ela faço tudo". As vizinhas não acreditavam em sua santidade: "homem é safado por instinto", mas ele não dava samba. 

Após três anos de casados, a vida parecia entrar numa rotina típica do triênio marital. Os dias se resumiam a trabalho, jornais, novelas e afazeres domésticos, da qual o marido sempre participava. Não queriam filhos, achavam-se novos, e com as economias planejavam viagens à praia, que sempre eram postergadas por gastos extraordinários.

Quando completaram exatos cinco anos de casamento ela chamou-o para jantar, e, enquanto ele se preparava, ela fez o pedido: "Quero uma surra de presente". O marido, sem reação, disse: "Deixa de bobagem, e sente-se" e sorriu gentilmente. Ela insistiu: "Uma surra, por nosso casamento". O homem, que jamais pensou em agredir qualquer pessoa, não sabia como reagir. O pedido não parecia surgir de uma pessoa sã. Pensara, na hora, que sua esposa poderia estar com alto índice de stress ou com depressão. De qualquer forma, não sabia como reagir. "Não posso, não tenho coragem". Ela, todavia, foi relutante: "Ou uma surra ou o divórcio".

Diante da situação, ele apoderou-se de um medo terrível e, sem pensar nas consequências, bateu em sua esposa como nunca havia feito em sua vida. Ela, porém, não chorava, parecia a cada novo golpe mais e mais eufórica. Gemia e pedia para que batesse mais e mais. Extenuado ele cai, e ela sobre ele. Ao vê-la, quase sem vida, e extremamente machucada, percebeu que ela já não era sua bela e amada esposa.

A solidão, então, o contamina. Sentia como se houvesse perdido o amor de sua vida, embora ela sangrasse ao seu lado no chão da cozinha. Ele a beija, no ímpeto de recuperar o amor que abrasava seu coração, mas só sente sangue. O abismo é cada vez mais medonho. Ela sorria, ele despedaçava. Tomado pela brutalidade da vida, segue até o banheiro e, com uma tesoura, fura os dois olhos. Não podia ver o que antes era a felicidade, portanto decidiu apenas senti-la. Foram felizes, e em todo aniversário de casamento a comemoração era banhada de sangue.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Noite

Tirou do bolso um maço surrado de cigarros. Bateu-o contra a mão oposta até que um cigarro saltasse ao maço. Tomou um cigarro pela boca, e deixou cair o maço em seu colo. O cigarro aguardava o fogo. Ele estava disperso olhando o horizonte. O alaranjamento devorava o céu azul, e ao mesmo tempo era devorado pelo negrume da noite. Parecia ser uma decisão difícil. Ele pegou o esqueiro no bolso da calça, mas não tirou a mão do bolso. Deixou-a lá, inerte, como que se dela fosse a responsabilidade. Tudo alaranjou, depois enegreceu. Quando a noite caiu, ele fumou, e esperou que o céu caísse sobre si, mas era o si sendo maior que o céu.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Devir

Quem dirá adeus aos velhos hábitos,
e se norteará por vales sombrios?
Quem fará da mente lagos e rios,
em que correram novos espíritos?

Quem dirá adeus às velhas convenções
enquanto engole todas as mundanidades?
Quem dará os ombros às verdades,
e não se esconderá das desilusões?

Há quem espere a decrepitude
de uma vida bucólica e senil.
O ofuscar dos dentes, a vicissitude,

o palácio de um mundo vazio.
Há que não queira apenas existir,
queira o viver, queira o devir.